Da procura e do erro

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No autobiográfico «Olhar Retrospectivo», Kandinsky conta que um «Palheiro», de Monet, e uma récita do «Lohengrin» de Wagner foram fundamentais para o seu percurso criativo. O primeiro foi visto em Paris, a ópera na Alemanha, e na Rússia, onde nasceu, os salões rústicos de Volodga foram igualmente as sementes de um porvir artístico revolucionário. Destas confissões, como de toda a história da arte e da ciência, depreendemos a importância da serendipidade, da procura desinteressada, do tempo (perdido) e mesmo do equívoco — «tenta outra vez, fracassa de novo, fracassa melhor», aconselhou-nos Beckett. De nos perdermos para encontrar um rumor da verdade. Privilégios que que, com os GPSs e as «ápes» e a autoridade da maioria ruidosa e os projectos e os organogramas e os índices, confinados em trilhos de feromonas sociais e na aridez da especialização, nos arriscamos a perder irremediavelmente.

Carlos M. Fernandes

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A invenção da burguesia

Sobre a ideia de Homem nos poemas homéricos, Maria Helena da Rocha Pereira diz-nos que falta, aos poemas, «uma concepção unitária da personalidade (…), [a] noção de vontade, que é posterior e, ipso facto, a de livre-arbítrio, que só naquela pode originar-se.» Alan Lighman, nas suas fábulas sobre a natureza do tempo, afirma, a páginas tantas, que «num mundo com o futuro pré-estabelecido», sem livre-arbítrio, portanto, «não pode haver bem nem mal.» O que nos conduz novamente à perplexidade de Kundera: por que razão Ulisses trocou Calipso — e a imortalidade e uma vida de alegrias e aventuras — por Penélope e a ilusão da harmonia doméstica?

Carlos M. Fernandes

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Paraíso perdido

Um clássico questiona-nos, alguém disse. Desafia a classificação e compreensão definitivas. Provoca uma reacção. Obriga-nos a regressar, uma e outra vez, enquanto nos comunica a terrível verdade: pior do que não ler um livro, é não o ler vezes suficientes. Vem isto a propósito do regresso, quase duas décadas após o primeiro contacto, à trilogia essencial da ficção de Albert Camus, começando pelo fim (A Queda). E da constatação, cruel, de que a suficiência não é uma medida literária e quase todos os livros que temos em casa estão, e ficarão, por ler.

Carlos M. Fernandes

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Diários de Granada (16-01-2013)

O céu carregado ameaçou neve. Com a chuva e a luz filtrada pelas nuvens, a praça da Hípica cobriu-se do tom metálico característico do Inverno granadino. O Alhambra esteve invisível durante a tarde e a serra escondida pelo manto plúmbeo. Nevou ali ao fundo, talvez à altura de Monachil enquanto cá em baixo a neve chegava já em forma de gotas pesadas e geladas. Ainda que único, não há nada tão efémero como um cristal de gelo.

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Espaço/tempo

Em 1932, James R. Killian disse, a propósito das experiências científico-fotográficas do engenheiro Harold Edgerton, que a ciência «nos permite ver e compreender contraindo e expandindo não só o espaço mas o tempo». Entretanto, passaram mais de setenta anos e a ciência moderna modernizou-se, questionou o reducionismo, aproximou-se do novo holismo da complexidade, e agora contrai e expande outras grandezas, manipulando paisagens secretas que se convertem, com técnicas diversas, nas decifráveis duas dimensões da imagem técnica.

harold-edgerton-bullet-and-apple-1393704296_b.jpgHarold Edgerton

Carlos M. Fernandes

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Eu sou

Skeletons of Man and of the Male Gorilla by Roger Fenton-c.1858.pngRoger Fenton, Esqueletos de Homem e Gorila, 1860

No princípio, o darwinismo substituiu a tautologia divina, «Eu sou Aquele que sou» (Êxodo 3:14), por outra, humana e secular: «eu sou aquele que sobrevive». Sem as ulteriores sofisticações, as teorias biológicas da variação das espécies estão reduzidas ao poder de intuição que as criou e prestam-se a todo o tipo de imposturas. As (aparentemente) mais inócuas centram-se na entronização do progresso e na crença em setas temporais que nos conduzem ao paraíso evolutivo. Aquelas que nos confundem com mísseis balísticos e escravos da epigenética, de forma a justificar a tentação liberticida, são mais sérias e perigosas. Juntas, dão-nos o retrato rigoroso da decadência da civilização contemporânea.

Carlos M. Fernandes

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O comboio de Auschwitz

No livro Railways: Their Rise, Progress and Construcion, o engenheiro Robert Ritchie arriscou uma profecia: «Os caminhos de ferro iluminarão os preconceitos e contribuirão para que os membros da grande família humana se conheçam melhor; tenderão assim a promover a civilização e a paz no mundo.» Estávamos em 1846. O Concerto da Europa já se desconcertava e cem anos mais tarde limpavam-se os destroços de uma civilização quase perdida. Serve isto como aviso aos incautos, aos deslumbrados da técnica e da ligação global e dos «comboios digitais», aos feiticeiros da «inovação»: o progresso é uma ilusão, a evolução é apenas adaptação, e estamos sempre tão perto da partir pedra novamente como de aterrar em Marte.

Carlos M. Fernandes

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Da inevitabilidade da morte

«La Jetée» (Chris Marker, 1962), objecto bizarro e confortavelmente instalado entre a fotografia, o cinema e a literatura, fala-nos do passado, essa carga que nos estrutura e condena, que se pode até confundir com o futuro, mas que, quando corrompe e coarcta o presente, se transfigura em aviso insistente e insuportável sobre a inevitabilidade da morte – a dada altura, ouve-se, em alemão, entre murmúrios imperceptíveis de médicos mengelianos, «die Hälfte von ihm ist hier, die andere Hälfte ist in die Vergangenheit» (metade dele está aqui, a outra metade está no passado), enquanto a metade do passado visita uma galeria de pássaros embalsamados.

Carlos M. Fernandes

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O espelho embaciado do passado

No conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luis Borges, por interposta personagem, diz que «os espelhos e a cópula são abomináveis, pois multiplicam o número de homens». A fotografia, espelho com memória – ou «o espelho embaciado do passado», como lhe chamou Vladimir Nabokov – não só os multiplica, como o faz numa cadência exponencial. Cuidado, pois, com o frenesim das imagens e o impulso narcisista. Não sabemos quantos mais homens e mulheres aguentará o mundo – que balança já no limite do alvoroço visceral.

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A excelência perdida

George Steiner comprimiu os quatro anos do curso de geral de Yale em apenas um (proeza que só é exequível quando uma mente brilhante encontra um sistema de ensino civilizado). Nesse período, estudou física, química, matemática, poética, epistemologia, filosofia e antropologia, entre outras áreas do conhecimento. Com a licenciatura nas mãos, enveredou pelas letras. Mas foi, para essa viagem, equipado com um manancial inesgotável de recursos para exprimir o mundo.

ng-436Jean-Baptiste Greuze, Rapaz com Livro de Estudo, 1757

Não sabemos se a universidade de Yale ainda estimula o conhecimento horizontal. O cancro da especialização já metastizou por todo o corpo da academia mundial. Sabemos que em Portugal e, em geral, na Europa, a aprendizagem multidisciplinar é, ao dia de hoje, uma quimera. Mesmo o ensino básico já foi destituído de todos os elementos que estruturam um ser humano minimamente decente. O inglês, numa perspectiva utilitarista, tomou o lugar que, em tempos saudosos, foi do latim (e, a julgar pelo que se vai ouvindo nas ruas, do português). A programação, novíssima obsessão da geração do efémero, avança como um elefante desastrado através de arrecadações mentais que ainda não estão convenientemente organizadas. À memorização e repetição, tocou-lhes em sorte o degredo, reservado para os expedientes de aprendizagem incompatíveis com o «progresso». E os clássicos, sem os quais não sabemos ler(-nos), são gradual e insidiosamente substituídos por panfletos de vulgaridade. Acrescentemos o nivelamento, a demonização da excelência, a estrangulamento de capacidades e o louvor da trivialidade, e temos o retrato completo de um crime perpetrado por uma quadrilha de medíocres, entre ideólogos e executores, que, como é habitual nas criaturas banais, avaliam os outros pela sua própria medida, denegando-lhes a possibilidade de fazer melhor, de superar desafios mais exigentes. Ora, aqueles que, com o voto, a solicitude, ou mesmo o silêncio, pactuam com a restrição dos horizontes de uma geração, são cúmplices do crime. E um cúmplice, em qualquer tempo ou lugar, é um criminoso.

Carlos M. Fernandes

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