Terra

Conhecia bem aquele dorso branco: o Veleta, como uma lua em quarto crescente despenhada e semienterrada, o radiotelescópio apontado aos limites da galáxia, a lagoa de Yeguas por detrás, invisível desde o mundo terreno, mas sempre ali, perpétua e serena. Podia dizer em que mês estava só pelas lágrimas de neve das cotas mais baixas, agora ondulantes, moldadas pelo degelo, noutras alturas afiladas de neve fresca. Mas sabia também que as estações, em tão olímpico lugar, são apenas o disfarce que encobre o ritmo geológico. Ali em cima não existe tempo, pensou. E lá em baixo, ao largo do enorme maciço bético que agora contemplava, os homenzinhos, patéticos na sua insignificância, nascem, vivem, morrem, em gerações atrás de gerações, em civilizações erguidas e derrubadas, em guerras com pausas para a paz, num fogo destruidor e regenerador que nunca chega até às atmosferas rarefeitas onde as pegadas da criatura solitária são ainda mais efémeras. Não há lugar para os homens na eternidade. E com esta certeza baixou a cabeça e pousou-a sobre a mochila.

Carlos M. Fernandes, Serra Nevada, 2012

Estava sozinho, na antecâmara da alta montanha, deitado sobre um imenso prado verde. Duas águias sobrevoavam o vale, até desparecerem, camufladas por um cabeço ocre. Diante de si, o refulgente dorso branco, o telescópio, o Veleta. E o silêncio, apenas interrompido pelo ocasional voo picado de algum moscardo de primavera. Um homem tem que subir uma montanha ou perder-se no mar para encontrar a solidão e ter uma ideia minimamente consistente sobre ele próprio. Lera isso em algum livro. Ou talvez fosse apenas uma das suas notas, escritas com letra ébria ao balcão de algum bar de má morte. Não se recordava. Mas escreveu outra nota, mental: um homem não vive, é apenas uma testemunha do mundo. E logo levou a mão ao bolso para confirmar se tinha dinheiro trocado. Há uma altura da vida, reflectiu, enquanto sentia o metal inerte entre o polegar e o indicador, um derradeiro período, depois de enterrados os machados de guerra e os primeiros fantasmas, em que devemos levar sempre uma moeda no bolso. E ainda que cem anos de solidão não lhe parecessem um mau projecto, sabia que um homem livre é sempre dono do seu destino. Assim, a moeda, ou para Carontes ou para o fundo do Estige.

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