Bruxelas

C’était au temps où Bruxelles rêvait
C’était au temps du cinéma muet
C’était au temps où Bruxelles chantait
C’était au temps où Bruxelles bruxellait

Jacques Brel, Bruxelles

Bruxelas é perfeita como capital do Império. É uma cidade que cresceu à medida dos burocratas: sem alma, sem rasgos, sem um traço de personalidade. Há nove anos, quando palmilhei pela primeira vez as suas ruas, numa tarde de Setembro que prometia companhia e anunciava nova etapa de vida, não encontrei motivos que me prendessem a Bruxelas. Aguardava o TGV que vinha de Paris, e gastei a última hora de espera num bar soturno da estação Midi. Logo que a ansiada hora chegou, avancei para Antuérpia e nunca mais voltei à capital belga, até há um par de semanas, por razões intransponíveis. Desta vez tive mais algum tempo para viver a cidade, mas os dias que passei sob aquele eterno céu cinzento apenas reforçaram o preconceito.

O centro de Bruxelas converge para a Grand Place e por brevíssimos instantes agarramo-nos à ilusão de estarmos perante mais uma cidade grandiosa do centro da Europa, outra encruzilhada de culturas que não abdicou das reminiscências imperiais. Mas logo percorremos e deixamos para trás as ruas adjacentes à praça central, esquivando-nos às investidas dos pescadores de turistas que, com a ementa na mão, nos prometem mil encantos nos mexilhões vendidos a preço de lagosta, e acabamos perdidos no silêncio de ruas anónimas. Há uma livraria que nos desperta, um café ilustre, numa esquina, que pede meia hora e um jornal, uma taberna acolhedora que nos convence a entrar. Afinal, estamos na Europa Central, e há traços de elegância no ar. Mas ténues. E que logo se esfumam quando nos afastamos do centro, para sul, por exemplo, para a Gare du Midi, que, em tandem com a estação do norte, sitia a cidade, sufoca-a com a pressão da miséria, do multiculturalismo e do isolamento dos expatriados. Um passo fora do centro de Bruxelas basta para que a pérfida periferia mostre as suas garras descoroçoantes. Os guetos sucedem-se, com dimensões bem distintas. Enormes, no caso dos árabes. Pequenos, do tamanho de um café, quando há portugueses ou espanhóis. (Os cafés portugueses e espanhóis parecem amostras dos respectivos países prontas para serem escrutinadas por observador atento. Nos primeiros impera a tristeza, o ressentimento, e o silêncio apenas interrompido por discussões amargas e sem sentido. Bebe-se Sagres. Salva-se, nalguns lugares, a boa disposição dos africanos que falam português. Nos segundos há música alta, palmas, risos, e bebe-se cerveja belga.)

A Place de la Constitución, o anfiteatro da Midi, coberto em grande parte pelas linhas de comboio que cortam a cidade ao meio, é o palco ideal para espreitar a Europa que se esconde por trás das praças altivas e da prosperidade da (velha) classe média. As estações de comboio têm o duvidoso dom de atrair a refugo da urbe. São lugares de chegada e partida que raramente reflectem uma só característica da cidade que servem. Mas não ficamos imunes às lições das estações de Bruxelas. Por entre as zonas circundantes cresce uma caricatura da Europa, um novo mundo que põe em causa a civilização baseada na liberdade e igualdade perante a lei. Sejamos directos: há bairros em Bruxelas (e noutras cidades europeias) que mais parecem enclaves magrebinos. O carácter segregativo e intolerante do multiculturalismo é-nos oferecido, perante os nossos olhos incrédulos, com requintes de invasão. Estamos muito longe de Nova Iorque, cidade de verdadeira mescla cultural, onde até um bairro quase autista como Chinatown assenta como uma luva na dinâmica da cidade. Numa Europa em decadência demográfica, sustenta-se o sonho do Estado Social com a mão-de-obra barata que nos chega dos mais inesperados recantos do mundo. Mão-de-obra descartável, usada e abusada por governos e cidadãos que não querem abdicar do seu direito à preguiça. Os têxteis chineses são diabolizados pelo progressista, mas os operários senegaleses são acarinhados, pois são esses que pagam a reforma do europeu nauseado. Bruxelas é o palco principal desta deriva europeia no sentido da sua própria extinção, e até o basfond perdeu o encanto. Os bares da estação, com os seus néones de bordel, já não convidam à reflexão sobre a condição humana. Longe do mar, não há des marins qui chantent. Longe da Europa, já não há des marins qui dansent/ En se frottant la panse/ Sur la panse des femmes. Sem o disfarce da magnificência, mesmo que perdida sob o olhar de mil leopardos, só vemos um desfile de miséria que nos acorda, com um estremecimento, de um sonho que há muito se tornou pesadelo. E, asfixiados pelo islamismo, o qual, em Bruxelas enche o peito com nomes como Alhambra e Andaluzia, nomes de baptismo de restaurantes onde não há tapas nem cañas, pode chegar o dia em que não dançaremos nem cantaremos, muito menos encostados ao ventre de uma mulher, e seguramente sem uma cerveja para beber, rebeber e rebeber outra vez.

Mas há um aspecto positivo nesta descaracterização de Bruxelas, nesta cidade que já não canta, que já não se lembra dos tempos do cinema mudo, uma cidade onde nem o fantasma de Brel se atreve a entrar. No dia em que os europeus perderem a cabeça – e se não se perderem entretanto numa nova histeria de nacionalismo arquitectada por um qualquer aspirante a tirano* – e resolverem construir um muro em redor dos burocratas, Bruxelas é o lugar ideal para ficar esquecido para sempre. O gueto de Bruxelas. Não se perde nada e talvez recuperemos a diversidade perdida, a discrepância interna que não nos separa, mas que nos une, e que tanto incomoda, por motivos inescrutáveis, os burocratas.

Carlos M. Fernandes, Outubro de 2008

*Não esquecer que a Bélgica foi palco de uma das mais representativas manifestações de nacionalismo romântico, logo após o final de La Muette de Portici, de Daniel Auber, a 25 de Agosto de 1830. A Bélgica é o resultado de uma ópera! Mas se é verdade que o romantismo foi o edificador dos Estados-nação, é também indiscutível que as perversas doutrinas hegelianas podem levar à barbárie. Já aconteceu. A história não se repete (deixemos essas teorias para os historicistas), mas o o zeitgeist europeu não nos deixa dormir descansados.

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