Nós, ao contrário das células que nos compõem, não estamos em trajectórias balísticas; somos mísseis guiados, capazes de alterar a direcção em qualquer momento, abandonando objectivos, trocando de alianças, formando cabalas e depois traindo-as, e assim sucessivamente. Para nós é sempre tempo de tomar decisões e, como vivemos num mundo de memes, nenhuma consideração nos é alheia, nem uma conclusão prévia. Por esta razão, somos constantemente confrontados com oportunidades e dilemas sociais para cujo o tipo a teoria de jogos fornece o campo de batalha e as regras de participação mas não as soluções. Qualquer teoria do nascimento da ética vai ter de integrar a cultura com a biologia. Como já referi, a vida, para as pessoas em sociedade, é mais complicada.
Daniel Dennett, A Ideia Perigosa de Darwin
É contranatura(l)! Esta expressão, tão vazia quanto frequente no discurso comum, é uma das faces mais visíveis daquilo a que, usando a expressão no sentido lato, se dá o nome de falácia naturalista. Talvez fosse mais correcto usar a designação apelo à natureza, dado que a falácia naturalista (G.E. Moore, Principia Ethica) trata mais directamente da questão do Bem e da impossibilidade de o definir de acordo com qualquer propriedade natural. No entanto, o apelo à natureza, tal como a derivação do “deve” a partir do “é”, outra vertente da mesma falácia (no sentido lato do termo), são recursos argumentativos frequentes. Se no primeiro caso a natureza serve para condenar comportamentos sociais ou práticas médico-científicas que não são do agrado do naturalista (é um recurso infantil e facilmente desmontável), o problema é-deve é mais sério e merece outra atenção. Para além disso, se derivar o “deve” do “é” é um caminho ilusório, deduzir o “é” do “deve” não o será menos. Ambas as falácias corromperam, por exemplo, a discussão entre os sociobiólogos e os seus opositores.
A falácia naturalista descobre-se em alguns sectores da Sociobiologia, e afecta mesmo aqueles que, a certa altura, trilharam caminhos seminais. O exemplo mais claro desta deriva encontramo-lo no trabalho de E.O. Wilson. O seu estudo dos insectos sociais é um marco na entomologia e as suas ramificações estendem-se até à computação evolutiva, por exemplo. Por outro lado, quando se embrenhou na Ética (On Human Nature, por exemplo) pôs em causa o conceito de liberdade individual e definiu a moral como uma adaptação destinada a fomentar os nossos fins reprodutivos (poucos anos antes, já B.F. Skinner defendia a prioridade da sobrevivência da cultura em relação à liberdade e dignidade humanas, um apelo ao colectivismo disfarçado de darwinismo). A referência de David Sloan Wilson e Elliot Sober à história da seita Huterista, uma comunidade que evoluiu no Canadá até ao ponto de um colectivismo de aparência insectiforme, é mesmo perigosa; por menos já se edificaram impérios sobre as cinzas da liberdade. Os exemplos sucedem-se a um ritmo indesejável, relegando para um plano secundário as pesquisas pertinentes e produtivas.
Mas os abusos não se encontram apenas do lado da Sociobiologia. Os cientistas radicais, liderados por Richard Lewontin e Stephen J. Gould, dois homens que caíram muitas vezes na tentação de misturar o marxismo com a Ciência, atacaram cegamente o edifício sociobiológico com todas as armas menos aquelas que se poderiam considerar próprias de um cientista. A falácia naturalista invertida, que parte da moral para chegar ao “é”, foi utilizada sem pudor para recusar qualquer ideia vinda da Sociobiologia, transformando o debate, na segunda metade dos anos setenta, numa guerra patética que não contribuiu para a dignificação da Ciência. Os cientistas radicais encontravam agendas racistas, sexistas e fascistas em todos os textos sociobiológicos. Imersos num ambiente de guerrilha, E.O. Wilson e outros defendiam-se como podiam, dizendo que apenas tentavam descrever a realidade. Pelo caminho, reduziam também todos os seus críticos a um bando de fanáticos, confundindo as pedras dos cientistas radicais com as críticas sérias e construtivas que iam aparecendo (até Gould, no meio da sua própria histeria, acertou nalgumas críticas). Não havia entendimento possível. De facto, afirmações como: A existência e a sobrevivência de um grupo requer um certo grau de conformismo, senão o grupo arrisca-se a extinguir-se. A disponibilidade do homem para ser doutrinado é, portanto, um carácter hereditário, seleccionado pela evolução… (E.O. Wilson, Science et Vie, Maio de 1978), não são fáceis de analisar. Se por um lado parecem apenas constatações do óbvio, mostrando que os autores não acreditam em sociedades perfeitas, também é verdade que muitas vezes, lidas e relidas dentro do contexto das obras, parecem querer derivar princípios éticos a partir da biologia. As coisas radicalizaram-se ainda mais quando um certo sector do pensamento económico não hesitou em recorrer à Sociobiologia para tentar encontrar uma base biológica que justificasse as virtudes do mercado livre. Deu-se um novo impulso à bioeconomia, mas, aos olhos dos seus opositores, ressuscitou-se um fantasma: o social-darwinismo. Milton Friedman, talvez percebendo o perigo de uma teoria económica baseada na Sociobiologia afirmou, com lucidez, que não há necessidade de explicação genética para concluir da superioridade da economia liberal. O mercado livre foi uma das condições necessárias para a abertura das sociedades primitivas porque é uma via fundamental para a iniciativa individual. Não é por acaso que as resistências totalitárias a essa abertura tenham sempre apontado as suas baterias às engrenagens do comércio, atacando os portos da Atenas antiga, instituindo o proteccionismo nos Estados modernos, agredindo os judeus (o anti-semitismo é uma consequência directa do anti-capitalismo). A superioridade da economia liberal pode ser procurada na oposição entre liberdade e servidão. Mas daí até se poder inferir a sua autoridade a partir de uma qualquer lei natural vai uma grande distância.
O debate entre sociobiólogos e cientistas radicais assemelha-se à eterna discussão entre historicistas e engenheiros sociais utópicos, um fratricídio ideológico recorrente na História. O mundo descrito pela Sociobiologia parece uma República platónica de contornos modernos, com o ideal da perfeição localizado num tempo muito distante e inalcançável1 (A sociedade perfeita, desprovida de conflitos e praticando o altruísmo total e a cooperação, só será possível quando todos os seus membros forem geneticamente idênticos, E.O. Wilson), mas com a mesma hierarquia e colectivismo2. Entre este mundo e a sociedade perfeita, sediada no naturalismo rousseauniano e na engenharia social, defendida pela linha da frente dos cientistas radicais, que venha o colectivista e escolha.
A falácia naturalista acaba por servir para tudo: a cooperação que se observa na natureza indica-nos o caminho da solidariedade; a competição diz-nos que as cidades deviam ser selvas; a reprodução macho-fêmea não deixa espaço para outras opções de vida; do facto de a maioria ter filhos deduz-se que não os ter é errado (ou egoísta, como muitas vezes se diz, num assomo de ética em função do grupo); a natureza “não-divina” dos homens não permite o avanço de certas linhas de investigação médica (Lewontin foi uma força activa de bloqueio contra a investigação genética), etc. E depois chegamos à teoria orgânica do Estado. Aí, Hobbes tem alguma culpa, mas não muita pois o tribalismo renasceu logo na primeira sociedade que o abandonou (?), e cerca de dois milénios e meio depois o pensamento ocidental ainda o afaga no seu regaço. O Estado visto como organismo é quase uma réplica das sociedades tribais e primitivas. (Mas estas, paradoxalmente, ainda se organizavam sob a tutela de um proto-estado.) Assim, a ideia acaba por parecer um regresso ao útero: estabelecer um modelo para as sociedades demograficamente vastas que reflicta as características colectivistas e/ou hierárquicas das sociedades primitivas, ou, pelo menos, um modelo que nasça de uma mutação dessas sociedades, mas uma mutação dirigida no sentido da perfeição do “organismo”. É uma visão que agrada a meio mundo, desde os que anseiam pelo regresso à natureza até aos defensores do “amor entre todos” como um ideal natural e hoje corrompido, passando por aqueles gostariam de viver sob a protecção de um Estado/Organismo porque não suportam a ideia de responsabilidade individual. É onde se sentem bem que encontram o Bem (e aqui já estamos em terreno perscrutado por Moore). Daí até se estabelecer a utilidade colectiva como princípio ético é um passo. Um passo gigante para o Homem, mas um passo atrás para a humanidade. Em direcção ao abismo.