Já escureceu. Estou outra vez no Chiosco della Pescheria, debaixo da ponte do comboio. Fecha-se o ciclo siciliano. Bebo uma Moretti na mesma mesa de plástico. Há pouca gente por aqui. Alguns dos restaurantes que cercam a pescheria — adormecida a esta hora — estão fechados (é segunda-feira). Começo a voltar, lenta e relutantemente, à realidade, à amarga e aborrecida realidade. Somos chamas que se apagam serenamente num corredor da morte com décadas de comprimento (outras, apagam-se com um sopro cruel). Somos também os caminhos que escolhemos (escolho sempre o mais lento). Vamos no sentido certo e só há uma saída do labirinto. Não podemos equivocar-nos. Há distracções, mas não nos enganamos. Há paisagens sicilianas que passam por uma pantalha de vidro, alegorias naturais, terra esventrada, colinas sensuais, montanhas austeras e agressivas, masculinas, mas não nos equivocamos (ouve-se o gelo outra, vez, como a percussão de uma banda militar, vende-se gelo aqui, na única banca acordada da pescheria), e, sabendo o que sei, repetiria tudo, o passado, o presente, a sugestão de futuro diante de mim, o chiosco, a pescheria, o homem que vende mexilhões, a Catânia, a Sicília, este idioma ao qual a doutrina-das-nações prefere chamar dialecto, Taormina e o Arco Rosso, Sciacca, Sciacca e a destempero induzido por uma fotografia num velho livro comprado na granadina San Jerónimo, a manhã de Sciacca, quente, uterina, incandescente, a noite de Palermo, lenta e paciente, Palermo, padrão de mil teias urbanas, inescrutáveis, cidade de ruídos e de escombros de civilizações perdidas, de ruínas de três milénios, (passa o comboio, a mesa trepida, cheira a peixe, a água pútrida, a sangue e a suor, ouve-se um clarinete balcânico, são três ciganos que tocam ali ao fundo para a escassa clientela dos restaurantes da pescheria), ruínas de um povo disfuncional, um povo que não quer governar nem deixar-se governar, ruínas de uma Palermo coberta de lixo, imunda, com um odor a morte, um desejo de morte, mas tão viva, tão lúcida e vigilante, Palermo, e Catânia, voltamos a Catânia, à praça Bellini, ao centro vital da cidade, o círculo ardente, o teatro do Mediterrâneo, o anfiteatro de sonhos e desilusão, a arena de condenados, o lugar onde começamos e acabamos. Fim.
Carlos M. Fernandes, Catânia, 10 de Setembro de 2011