Dez dias nas ruas de Londres, entre o Bloomsbury, o Soho, o University College, e pouco mais. Andei quilómetros, alarguei a geografia e a toponímia privada. Baker Street, Russel Square, Tavistock Place, Shaftesbury Avenue, Old Compton Street, Thames. Nomes que transportam aos ombros uma história nobre e brava, tal como qualquer singela parede de Londres nos afaga com um enredo milenar. Há um clube inglês de futebol que vive sob o lema You’ll never walk alone. É essa sensação de conforto que temos ao percorrer as ruas de Londres; a frase parece que nos acompanha em todos o instantes, que nos surge escrita no pavimento a cada passo que damos. Na pátria do individualismo encontramos o aconchego da espécie. Só a um colectivista é que isto pode parecer estranho.
Carlos M. Fernandes, Londres, 2008
(Visitei Londres pela primeira vez em 2008 após muitos anos de viagens. O que está perto acaba sempre por ficar para trás, tal como aconteceu durante muito tempo com Sevilha. Mas alegra-me ter percebido, ali, que ainda não perdi a capacidade de me deslumbrar com algo que, à distância, parecia tão familiar e banal. Quando isso acontecer, quando desaparecer a tendência para o assombramento, é altura de guardar as malas no sótão.)
Não entrei em museus nem em galerias, mas nesse registo só lamento ter perdido, por desleixo, a hipótese de comprar um bilhete para o Don Giovanni da Royal Opera House. Abaixo de Mozart já nada valia a pena. As ruas bastaram. Quando me cansava, entrava numa livraria ou num pub e descansava os olhos nas imensas filas de livros, ou então folheava as compras com uma ale ao lado.
Os pubs! Umas das muitas instituições inglesas que foram preservadas por quem melhor o sabe fazer. Mas…saberão mesmo?, ou começam a dar sinais de “continentalização”, arrasando aquilo que demorou séculos a erguer? Os pubs de hoje já não são os de ontem (quase literalmente). No dia 1 de Julho deste ano (2008) tudo mudou. A infame lei antitabaco chegou às ruas de Londres como um rolo compressor e ignorou tradições, acorrentou a liberdade e desprezou a responsabilidade individual. Sem transigência ou excepções. É desolador. Uma cervejaria sem fumo é como uma cerveja sem álcool, é como tremoços sem sal. É uma experiência coxa. A plenitude está próxima, mas a beleza da madeira escura, o sabor agreste das ale ou anacronismo das alcatifas não são suficientes para fazer esquecer a ideia do verdadeiro pub. Alguns, enfastiados, e do alto de uma putativa sabedoria, dizem que noutros lugares, como Nova Iorque, já nem se discute esta questão: não se fuma nos bares e ponto final. É verdade, mas a resignação colectiva não pode ser argumento para encerrar a revolta.
A continentalização da Inglaterra continua. As câmaras de vigilância já fazem parte do património da cidade. You’ll never walk alone é agora uma frase mais literal e assustadora, e nem a velha casa de George Orwell escapa ao fulgor policial. Num artigo publicado na última edição da revista Atlântico, o André Azevedo Alves leva-nos mais longe, e fala de Inglaterra, da vigilância electrónica do lixo doméstico (!) e da forma como as crianças são agora incentivadas a denunciar pais fumadores. Acabou-se. Se o último reduto da liberdade, daquela liberdade que é uma herança — como dizia Burke — que deveria acarinhada como um objecto precioso de família, se esse último bastião cai, o que nos espera? Os ingleses estão a desbaratar o legado. Nós, que sempre fomos pobres nesse aspecto, e que nunca tivemos pais fundadores para ancorar uma ideia de liberdade, temos um futuro ainda mais negro pela frente. Que o fantasma de Churchill os assombre sem piedade; pode ser que se assustem.
Carlos M. Fernandes, Julho de 2008
P.S. Londres é a face horrenda do socialismo e de uma sociedade amedrontada e escondidada por detrás da tirania das doutrina “politicamente correctas”. Mas, apesar das nuvens pesadas, é uma grande cidade.