Córdoba

Ontem de manhã abri a janela do quarto e ali estava ela outra vez, a Catedral-Mesquita de Córdova, debruçado sobre o Guadalquivir, e debaixo de um manto cerúleo de Novembro. Sob a ponte romana, que une a praça da catedral ao Campo de la Verdad, passam, desde há dois mil anos, as águas do Grande Rio, indiferentes aos traços genéticos dos patronos da cidade. O templo, esse, já conta com uns veneráveis mil e trezentos anos e foi testemunha do período de ouro, entre os séculos X e XII, quando Córdova, estimulada por um milhão de habitantes e pelo engenho dos polimatas árabes e judeus, era o centro do mundo.

Em jeito de despedida, fiquei alguns momentos a contemplar a catedral. E não pude deixar de pensar que vivemos tempos ridículos (e perigosos). Ali ao fundo, pelas portas que dão acesso ao Pátio das Laranjas, entram homens, mulheres e transexuais, cristãos, muçulmanos e ateus, brancos, negros e azuis. Nas ruas que ladeiam a catedral e que logo se estendem pela juderia, circulam livremente cidadãos de todo o mundo, turistas, nativos ou imigrantes, com liberdade de culto e de conduta. Das portas dos restaurantes escapa-se o aroma oriental a cravinho e açafrão do rabo de touro cordovês, e, lá dentro, nas mesas, o tom rosáceo do salmorejo denuncia a maior oferta do Novo Mundo à cozinha europeia, o tomate. No entanto, do norte e do sul, chegam os gritos de intolerância, verberando uma imaginária tirania castelhana ou um sectarismo ocidental e cristão. Chamam-nos reaccionários, enquanto cobrem as suas mulheres com panos sombrios e proíbem a entradas de jogadores estrangeiros nos seus clubes de futebol. O intolerante é esquizofrénico e vê (o seu próprio) fanatismo em cada gesto do Outro.

Do outro lado do Mediterrâneo há uma indisfarçável ânsia de reconquista e o reavivamento do lendário suspiro do mouro, um suspiro por um Al-andalus há muito perdido nas brumas do tempo e da decadência do Islão moderna. É verdade que a História não tem um ponto final e que as fronteiras sempre oscilaram ao sabor do tempo e da vontade dos homens. O que se celebra de um lado não pode ser, por princípio absoluto e inegociável, proibido do outro. Luta-se por aquilo em que se acredita. Mas aquilo em que se acredita, no seio da vaga mourisca que ambiciona regressar à Península Ibérica, não cabe na sociedade aberta que, com mais ou menos sucesso, tentamos edificar e defender. A guarda avançada do Islão mais intransigente funda-se no obscurantismo. A cultura do Al-andalus cordovês é um corpo estranho a essas brigadas.

Do norte, por muitos comunicados que se façam (com carapuças do Klu-Klux-Klein, não vá o arrependimento tecê-las), ameaça-nos um ódio a tudo o que não seja da pura raça basca, e com linhagem impoluta até aos tetravós. Somos escumalha impura que pode ser despedaçada por bombas ou aniquilada com um tiro na nuca. Na Catalunha, sem bombas, mas com investidas subtis e eficazes, proíbem-se os touros, o castelhano, e as bandeiras espanholas, e até os recuerdos flamencos estão ameaçados de extinção, por decreto, nas ramblas de Barcelona. Pobres ramblas, que já não são mais do que um circo temático numa cidade que foi outrora vibrante, mas que hoje se arrisca a cair num torvelinho de intolerância e provincianismo.

Carlos M. Fernandes, Córdoba, 2011

Finalmente, temos os pequeno-burgueses indignados, aliados dos terroristas de norte e sul, agentes infiltrados na sociedade aberta, urbanitas pedantes das grandes cidades ibéricas que vomitam ódio contra o capitalismo e o modo de vida ocidental desde os seus áipádes e áifónes. São meninos mimados e rabugentos que odeiam a democracia excepto quando a democracia tem os resultados desejados (e até são capazes de distinguir a boa e a má democracia dentro do mesmo acto eleitoral). São os piores. São corruptelas de seres humanos que brindam à queda de torres ocidentais ou a às bombas da ETA com champanhe e caviar. São os mais cobardolas da matilha de cães raivosos que ameaça o estilo de vida ocidental (o verdadeiro multiculturalismo, aquele que não cede a práticas bárbaras). Guerreiros do sofá, do teclado e do gin tónico. Mas deixemo-los espumar de fúria enquanto passeamos pelas margens do Guadalquivir, alimentando o olhar com o legado de romanos, árabes, judeus, cristãos e outro meio mundo. Ser civilizado é saber manter a graça debaixo de fogo e, contra os bárbaros, o desprezo é a melhor arma. Se se aproximarem demasiado, então lá teremos que fazer uso de uma mão pesada pronta para educar os meninos.

Carlos M. Fernandes

 Granada, Novembro de 2011

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