Belgrado

Carlos M. Fernandes, Belgrado, 2010

Uma noite em branco no comboio que atravessou o Montenegro e o sul da Sérvia, com a temperatura a subir vertiginosamente até atingir os quarentas graus na manhã de Belgrado. Uma saída precipitada da carruagem em Novi Beograd e uma deambulação bêbeda de sono por uma feira cigana de domingo, feito de remendos no passeio encimados por toda a sorte de objectos. Uma viagem de autocarro até ao centro, carregando uma mala que cada vez mais se agarrava ao chão. Uma tentativa vã de dormir algumas horas no quarto, sob a temperatura infernal de uma cidade que, nesse dia, começava a sofrer os efeitos de uma onda de calor inesperada. Uma tarde a caminhar pelas ruas de Belgrado e a descansar nas esplanadas dos barcos do rio Sava, numa disposição dormente e lenta. Foi assim o dia que nos levou à noite. E a noite de domingo surpreendeu-nos com as portas fechadas dos pequenos restaurantes do centro de Belgrado, aqueles onde as ementas em cirílico só deixam espaço para a aleatoriedade da escolha. Sobrava a Skadarska, a rua boémia de Belgrado, como gostam de lhe chamar os roteiros turísticos. Não é o coração da cidade, e muito menos a sua artéria mais genuína. Mas quando as horas avançam e as alternativas escasseiam, uma escolha serena e ponderada do lugar para jantar não trará, certamente, más recordações. Foi com o corpo a pedir comida e descanso que nos sentámos numa mesa no exterior do restaurante Buca. As esplanadas transbordavam de gente que fugia, sem sucesso, ao calor que continuava a queimar, mesmo durante a noite. Ouvia-se música. Não há restaurante na Skadarska que não tenha a sua pequena banda a entreter a rua. E era assim naquela noite domingo, quente como o inferno, que pedia o diabo no corpo mas não saía de uma indolência teimosa. Até que uma fanfarra cigana de sopros, no restaurante ao lado, inicia uma alucinante viagem à alma sérvia. Toda a rua estremeceu com os trompetes e tubas que iam narrando os clássicos do repertório balcânico. Durdevdan, Mesecina, Adje Jano levantavam as mesas, levantavam os braços daqueles que passavam e daqueles que ficavam sentados nas esplanadas, braços que faziam o gesto de ensaio de bailarico de aldeia que caracteriza a reacção à cadência acelerada da música balcânica. Cantava-se alto, muito alto. Erguiam-se canecas de Jelen Pivo e cálices de Šljivovica. No interior do restaurante o ambiente contrastava com aquele se vivia lá fora. A sala havia sido despojada de todas as mesas, que serviam agora para reforçar a esplanada. Uma nuvem de fumo percorria o espaço vazio, até chegar à entrada dos lavabos, onde uma mulher com os olhos semicerrados, os cabelos brancos como leite e um cigarro colado ao canto da boca pedia os habituais dez dinar. Do exterior, o som abafado dos trompetes ajudava a compor o cenário onírico. Nessa altura, vergado ao peso da noite em branco, dos quilómetros percorridos durante a tarde, da carne do mesano meso, da Jelen Pivo, vi aproximar-se um ganso voando lenta e desajeitadamente, rodeado por um manto de penas, enquanto o meu corpo levitava sobre o mundo gozando de uma espécie de imponderabilidade terrestre que só se encontra nos Balcãs. O vórtice das emoções balcânicas começava a puxar-me. Chegara a Belgrado.

Carlos M. Fernandes, Julho de 2006

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